Tenho fome de sorrisos de sol e da preguiça do vento... da embriagante lânguidez do entardecer, espraiando-se sob os campos de trigo doirado, quase maduro. Dos dias cálidos a prometerem sinfonias de grilos e de rãs noites adentro. Tenho saudades do bailado ondulante das borboletas e do verde fluorscente dos luzicus na parede do meu quintal. Dos lírios que enfeitavam o jardim abandonado, em frente à casa alta de xisto da rua da minha avó e em cujo telhado de lajes quentes, me sentava junto dela e me demorava a ouvir as suas histórias de encantar, que me contava por entre costuras de dedal e agulhas difíceis de enfiar.
Lembro-me das dálias rubras sem canteiro, nascidas da terra, junto ao corrimão das videiras. Das tangerinas que salpicavam o chão em volta da tangerineira e das outras que colhíamos com a escada da azeitona. Dos abrunhos de frança a pingarem de mel... das abelhas gulosas e da bilha de barro onde se guardava a água fresca que nos matava a sede quando longe das nascentes.
Dos enfeites e das festas, da música e do largo cheio de gente.


Sou o que sou
Sem chegar a saber
Quem realmente sou

Sinto-me
No intervalo
Entre aquilo que fui
E o que nunca cheguei
A ser

E o que fui afinal?
Interrogo-me agora
Quando me busco
E não me acho
No álbum vazio
Da estante...

Se ontem me morri
Sem saber
Quando me abandonei
E me esqueci
De viver

Se ontem não fui
E hoje não sei

Talvez amanhã
Ainda venha a tempo
De vir a ser
Um qualquer
Alguém...!



Existem lugares onde o silêncio é a melhor das companhias.
O dizer da contemplação luxuriante do instante partilhado, é o agasalho perfeito que embrulha as almas felizes, satisfeitas por alcançarem o indizível das coisas...


Tenho um rio nos meus olhos, que corre sempre sereno a caminho da foz dos meus pensamentos...
Os meus passos imaginários, aventuraram-se no infinito do horizonte, e, sem me dar conta, trouxeram-me a estas margens que gravei na lembrança de um fim de tarde de Outono que nunca existiu...
Sentada neste chão sem terra, desenho no meu caderno de folhas brancas, um esboço de um poema sem letras, que me ofereceste sem te importares se o perceberia ou não... onde a silhueta de um moliçeiro se ergue no leito quieto do meu rio. Este mesmo rio onde um dia navegou a minha imaginação, sempre que te avistava através das cortinas de cambraia cor de violeta, que esvoaçavam ao sabor da brisa das tuas palavras quentes, que me chegavam sob a forma de cartas sem remetente, enviadas de um tempo que se perdia na lonjura dos dias sem fim.
Hoje regressaste desse tempo, mas já não és o mesmo. A tua imagem envelheceu, os teus cabelos já tão ralos e fracos embranqueceram e embora os teus olhos escuros e cavados me olhem fixamente, não me vêem... há um vazio que preenche este espaço enorme cheio de promessas e desejos do que nunca vivemos. E o tempo, sempre o mesmo malvado tempo!... que um dia nos aproximou é o mesmo que nos afasta, neste constante e ininterrupto martelar de tic tac's sem volta.


No tempo
Das desfolhadas
Era vê-los felizes
Raparigas e rapazes
Numa roda valente
Em torno das espigas

Alegres
Eram as cantigas
Que animavam a roda
Dos ansiosos corações
Pela achada do milho rei

Entre abraços
E beijinhos
Permitido seria, enfim
O tal
Dado de fugida
Na face da namorada
Que, ruborizada
Toda ela se consolava...

Concertinas
Apareciam
No fim da desfolhada
Para animar o bailarico
Até de madrugada!




Esta é a história
De um povo
De cujo fado
Já não há
Memória...

Da faina do mar
Das traineiras
Das terras
Lavradas
E dos carros de bois

Das lavadeiras
Das canseiras
E das (des)ilusões...

Diluiu-se tudo na espuma do tempo
Esfumou-se com o vento...

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(vale a pena).



 



Sei que me perco muitas vezes nas profundezas da memória, pela razão da procura de um não sei quê que me possa preencher o vazio evidente deste desalinho que me povoa a existência. Algo em que acredito, existir no vácuo onde se conserva toda a essência de uma vida que já vivi mas que me não pertence... que se me afigura surreal, como se nunca tivesse sido minha. Uma vida que visionei de um patamar superior, pelos olhos de uma alma que se separou do corpo, precisamente no instante imediatamente a seguir ao seu perecimento. Talvez resultante de uma qualquer maleita incurável; portanto, uma outra vida, interrompida e impedida de seguir o que lhe fora predestinado.
Preciso desse indizível que me venha polir os detalhes que a corrosão do tempo calcinou e atirou para a fogueira do esquecimento. É por isso que vou insistindo, teimosamente, no indelével gravado no fundo das minhas lembranças, para me não deixar perder do rasto do princípio. É por isso que volto sempre ao lugar onde tudo começou...


Se eu pudesse viajar no tempo, embarcaria sozinha numa cápsula invisível e rumaria a norte. Serenamente, atravessaria mil penumbras de primaveris madrugadas em busca das longínquas cordilheiras da infância perdida. Só ali, naquele lugar de sonho, sei que permanecem intactas todas as vivências felizes das quais me vão chegando ecos diluídos em fugazes lembranças.
Aterraria no surreal mundo das sensações, do lado de lá da ponte dos hemisférios das percepções, onde se acredita que nascem os rios das grandes emoções.
Esta seria, a viagem de todas as viagens. O épico feito da minha fantasia...


Sou a mente inquieta
que se esconde
na concavidade silenciosa
de uma ostra imperturbável

Sou o que resta de uma pétala
desfolhada
Uma quimera perdida
de uma asa quebrada...

Sou o fantasma errante
de uma vida adiada
O rio que vai deslizando manso
no leito infinito
sem retorno...

Sou a sombra que me persegue
em cada passo não dado
Sou o ser demente
que de mim se abeira
perigosamente!

Sou o viajante insano
do esconso abismo negro
Trago notícias
do vale dos degredos

Carrego comigo pesadelos
inimagináveis!...

Este que aqui vedes
sou eu
Penosamente
a caminho
Do fim...


Assomou-se-me ao vidro da janela, madrugada adentro. Trazia no rosto o pavor de uma criança assustada e nas mãos o sangue ainda quente a escorrer-lhe em bica da ponta dos dedos. No chão, um carreiro vermelho de pequenas pingas anunciava em silêncio o rasto de um insólito crime que acabara de acontecer, ali mesmo, no outro lado da esquina dobrada. Um crime, cuja lucidez do autor o obrigara antes a se implorar aos pés de si mesmo! E em cada palavra que escrevia, era como se uma espada o trespassasse até ao fundo de si, definhando no verbo, morrendo-se...



É preciso escutar
O silêncio
Saber ouvir
O que ele
Nos diz
No sussurro
De um leve
Sopro
D'alma...

Antes que o eco
Ensurdecedor
Do seu grito
Nos acabe
Por emudecer...