Lisboa,Sexta Feira dia 06 de Novembro de 2010 às 03.35h


Olá companheira!

Antes de mais, espero que esta minha carta te vá encontrar de saúde ou que pelo menos o reumático te dê algumas folgas de vez em quando, junto daqueles que te são mais queridos e te não tenham abandonado.
Tenho a certeza de que neste momento se esboçou um sorriso nesse teu rosto já muito enrugado mas ainda com traços das feições com que te conheci desde a meninice e que fui acompanhando em segredo, com a cumplicidade do teu espelho onde te miravas amiúdes vezes e ias descobrindo aqui e ali os estragos com que o inexorável tempo te ía brindando. Devagar, devagarinho... mas a preceito. Nunca te ouvi queixar pois sabia-te jovem, por vezes até criança, lá bem no fundo do teu sentir. E no fundo também, era isso que realmente importava. Para ti, foste jovem por toda essa vida fora, tenho a certeza disso!

Lembras-te de quando fizeste 30 anos e da tristeza que se abateu sobre ti nesse dia? Como se o mundo de repente te caísse sob os ombros e te fizesse ter consciência do seu peso em cada tic tac do relógio que trazias no pulso, na sua cavalgada infernal a caminho do fim. Tonta!...
Nem te passava pela cabeça o que a vida te tinha reservado e o que de bom e de menos bom ainda te viria a oferecer. É que, e se bem te recordas, viveste mais e intensamente em meia dúzia de anos do que tinhas vivido até ali.
Aprendeste com os teus próprios erros, remendaste o que pudeste e o resto para o qual não tinhas nenhum remédio de efeito rápido e eficaz, foste deixando andar até que o tempo curasse. E curou mesmo!
Tinhas sonhos como qualquer outro. Alguns não passavam disso mesmo, de sonhos. Mas outros viste como se foram realizando e fazendo de ti uma mulher. Uma pessoa mais segura, mais digna do respeito dos outros, e, o mais importante do que tudo, foste ganhando a pouco e pouco o amor próprio que te tinham roubado, tornando-te mais madura. Ganhaste confiança em ti mesma e aquilo que admiravas nalguns e nunca te passou pela cabeça que algum dia serias capaz de alcançar, chegou sorrateiramente, bateu à tua porta e surpreendeu-te!

Também te vi chorar muitas vezes. Mas no fim deixava-te aliviada. Lavavas o rosto e voltavas com aquele teu sorriso tão característico, com as tuas impulsivas e sonoras gargalhadas junto daqueles com quem convivias no dia a dia, como se nada tivesse acontecido e pronta para enfrentar um novo dia sempre acompanhada da esperança, que, apesar de tudo, nunca te abandonou. Talvez tenha sido ela que te deu forças para ir aguentando o barco que se debatia contra as tempestuosas marés que te assolavam a existência.
Criaste um filho que a certa altura se virou contra ti e tu nem sabias o porquê, ou se calhar até sabias mas preferias acreditar que era aquela rebeldia próprio da idade. O que tu sabias, isso sim, era que não merecias aquilo que ele te dizia e que te deixava arrasada. Ainda assim, mesmo quando, revoltado, se virava contra ti, procuravas sempre dar-lhe razão em qualquer coisa de modo a que te pudesses orgulhar do filho que afinal era teu...
Mais tarde acalmou e revelou-se ser aquela pessoa doce, meiga, equilibrada e dona de valores imprescindíveis a quem se chama ser um indivíduo de carácter; os tais valores que te tinham incutido desde criança e que tu, por sua vez, lhe incutiste também fazendo com que se tornasse uma pessoa de bem.

O que tu não esperavas, era que te acontecesse encontrar alguém importante com quem partilhar o resto da vida, bem sei, já estavas tão habituada a que ninguém se aproximasse de ti com esses propósitos, que te foi difícil acreditar que era realmente verdade e que os sentimentos também podem nascer de um inesperado acaso. De repente teres alguém junto de ti com quem partilhar as pequenas e as grandes coisas do dia a dia. Os medos, as angústias, as dúvidas, as alegrias e tudo o mais que possa acontecer. Nunca ninguém te viu tão feliz como passaste a ser dali para a frente. Acho que só aí conheceste o verdadeiro amor. Aquele que não se esgota como a paixão. Que vai ardendo em lume brando...

Se me estiveres a ler, é sinal de que estava certa no instante em que me ocorreu escrever-te esta carta a ti mesma, para te ser entregue expressamente no dia do teu 80º aniversário e com a recomendação de que fosses tu própria a lê-la.
Com óculos? Com lupa? Não interessa. Desenrasca-te!
Se assim for, é porque a operação que te fizeram ao olho direito há 43 anos atrás (numa altura em que a cegueira era iminente e como última chance de o reverter)e que te deu uma vida nova (uma espécie de milagre, como lhe chamaste) foi um verdadeiro sucesso! Bem haja a alminha do cirurgião que te operou!

Parabéns pelo teu 80º aniversário!
Que contes muitos, com saúde e que eu veja!

Sem mais de relevante, até porque a prosa já vai longa e se fossemos aqui a desfiar fio por fio do tanto que faltava ainda falar, nunca mais acabavas de me ler e os teus convidados devem estar mortinhos por te cantar os parabéns e te ver soprar tantas velas (tinham mesmo de ser 80?! Não sei se ainda terás folgo para tanto!).

Um grande abraço desta que daqui te escreve hoje, de um passado já longínquo mas certa de que bem vivo nas tuas memórias, cheia de esperança que este momento seja de facto real e recheado de emoção, tanta ou mais ainda do que aquela que neste momento me assalta!

Até um dia... companheira!



Ando a ver
Se escapo
À morte
Desde o dia
Em que nasci

Tenho tido sorte...

À cautela
Fiz um pacto
Com a vida
De ser escrava
No seu domínio
E tudo por ela
Fazer
Em troca
Tem-me dado guarida

E se um dia
A morte
Ainda me quiser
Pois que me venha
Buscar
Mas traga a foice
Bem afiada
Para da vida
A alma me ceifar
Sem que a vida
Dê por isso!





8 de Novembro de 2010

Amor,
No tempo e no espaço onde vivo sem teu amor
A existência perdeu seu brilho
E queria dizer-te, ainda hoje, que contigo foi toda a minha felicidade!

Amor perdido é um
Amor que permanentemente dói e dilacera a alma
Nem o vento, nem a chuva, nem o sol, ainda que acariciem meu rosto, poderão fazer-me esquecer o carinho de tuas mãos
O despertar da manhã não traz esperança de mais um dia contigo
Nem o cair da tarde a alegria do reencontro
Nem a noite o calor de teu corpo
E quando nela tento o esquecimento
Tu ainda voltas no sonho…

Mas nada, nada pode reavivar a existência desse amor que só a ti pertence!
Amo-te é a palavra que te digo todos os dias
E é essa mesma palavra que tantas vezes repetiste que ainda ouço
Amor, vemo-nos logo, 365 dias foi apenas um dia!

Que me dizes? A tua célebre frase, tão racional, que sempre atenuava minhas tristezas: «Deixa isso!»?
Como deixo isso? Quem, para além de ti, poderá acompanhar-me nesta travessia?
Deus responde em teu lugar: vai ao jardim! Lá encontrarás a flor da amizade…

Este poema tão belo e cheio de sentimento verdadeiro, foi-me enviado por uma pessoa que eu não conheço, mas à qual me sinto afectivamente ligada pelo sentimento que me desperta e sabendo que partilhou a vida com um amigo que deixou a vida terrena faz, hoje exactamente 1 ano e cuja dor da perda ainda se faz sentir de uma forma absolutamente insuportável…
Sei que este poema não era para estar aqui, mas na impossibilidade de estar noutro lado, é aqui que vai ficar.
Se clicarem aqui, irão certamente perceber o porquê.

Florentino, estejas tu onde estiveres, sei que estás a sorrir...



Escuto-me no caos da inconstância que me grita silvos de
silêncio, importunando-me o aparente sossego reinante na bolha côncava em que me refugio, escondendo-me desta minha perturbante insatisfação, que, sempre que me apanha, me queima desde as entranhas até ao avesso da razão.
Sei-me incapaz perante a perspectiva da criação da obra que nunca será... que não passará de um atabalhoado esboço na sebenta onde se amontoam os riscos e os rabiscos da minha insignificância.
Mas, ainda assim, sinto-me grande quando me penso, sentada na pequenez de um grão de pó onde ainda me permito sonhar.


1.        Qual a sua opinião acerca dos concursos que têm sido promovidos no EscritArtes?

R. - Acho que o EscritArtes é um site bastante dinâmico e por isso mesmo, sempre com boas iniciativas que visam estimular a não menos boa participação dos seus utilizadores. Este último concurso "Imagens da nossa memória" é um bom exemplo disso mesmo, basta olhar para o número de textos enviados e a qualidade dos mesmos.
Confesso que este foi o primeiro em que participei, mas sei que já houve outros com muito boa aderência também, por parte dos colegas de escritas que todos os dias partilham os seus trabalhos e opiniões no site.
Penso que estamos no bom caminho e os concursos são uma excelente forma de manter acesa a chama da criação. Os frutos, esses, estão à vista de todos e agora mais ainda, com a edição dos textos em livro; é a cereja que faltava, em cima do bolo!


2.        Quais os Tópicos que lhe inspiram maior motivação para participar?

R. - Começou por ser o tópico das poesias. Pois foi com a singeleza de poemas simples que dei os meus primeiros passos na blogosfera e mais tarde em sites de escrita, ao lado de outros já veteranos na arte de escrever. Foi assim que me fui dando a conhecer bem como aquilo que ia escrevendo. Sendo tudo na maior das simplicidades, visto que é na simplicidade que me defino enquanto pessoa. Com o passar do tempo e a vontade de descobrir noutras formas de escrita, principalmente na prosa poética, novas formas de expressão daquilo que pretendia transmitir ao leitor, fui dando preferência a esse tópico, tentando aperfeiçoar-me a cada novo trabalho.
Também gosto de escrever textos simples, pequenos e concisos, que contem pequenas histórias ou façam passar determinada mensagem acerca daquilo que sinto em relação a determinado tema que tenha sido o foco da minha atenção pelos mais variados motivos, alguns apenas pretendem expressar a minha indignação perante as coisas que me rodeiam.
Outros são só memória que tenho guardadas na mente e às quais desejo dar um corpo de palavras mas não sendo necessariamente poético. Alguns até são bem nus e crus.
Mas de quando em vez, lá me sai um poema...



3.         Acha que se deveriam criar mais Tópicos dentro deste site, ou bastam os actuais?

R. - Creio que os tópicos existentes são suficientes para dar asas à imaginação. Basta escolher o campo certo onde se pretende voar!


       4.  Poderá dar a sua sugestão para obtenção de maior e se possível, constante, dinamização do EscritArtes?

R. – Nos tempos que correm, com a constante oferta de novos espaços de partilha na internet, como o são as redes sociais que tão bem conhecemos, não é fácil manter as pessoas concentradas num lugar só, por mais aliciante que o mesmo seja.
Mas ajudaria imenso se as pessoas fossem aparecendo e participassem mais activamente. O problema é que a saturação, mais cedo ou mais tarde, também acaba por aparecer e fazer estragos.
Já para não falar da inércia, que quando se instala…

Mas a realização de eventos como os que o EscritArtes tem promovido desde o início, dando a oportunidade de todos se encontrarem ao vivo e a cores, se abraçarem em carne e osso, já é meio caminho andado para o site ser aquele ponto de encontro diário e incontornável.
Ajudaria imenso se houvesse quem por ali estivesse sempre presente, a dar as boas vindas a quem chega de novo, ajudando nisto e naquilo a quem ainda não sabe ou incentivando nos comentários, mas, por mais boa vontade que haja, todos sabemos que é quase impossível de manter essa forma de estar por muito tempo.


5.      5.  Tem ideias/temas para futuros Concursos? Revele-nos, por favor.

R. – Esta é a mais difícil das questões colocadas. Gostaria imenso de ser criativa e original ao ponto de aqui poder dar uma sugestão válida e deveras interessante, que deixasse “bichos-carpinteiros” em todos no sentido de motivar quem quisesse arrasar com as suas participações em massa, mas infelizmente não tenho essa capacidade. O que me ocorre é algo que me alimentou durante muito tempo, onde encontrei inspiração onde outros nem sequer imaginavam. Trata-se de algo tão simples como o acto de escrever inspirado onde quer que seja, só que, neste caso, a fonte da inspiração é uma imagem. Ou seja, a partir de uma imagem à escolha e ao gosto do participante, dar liberdade à imaginação e escrever o que a mesma lhe sugere. Simples, não acham? O resultado é surpreendente, acreditem!
No fim, só teriam de agregar a imagem inspiradora ao texto que dela resultou. Pode ser no género que quiserem, seja poesia, prosa poética ou prosa simples.
Penso que vale a pena tentar. Deixo isso à consideração da administração do site, mas convicta de que teria adesão.





Não sei quantas de mim
Tenho
Quando para trás olho
E são tantas de mim
As que vejo

Se fossem almas
Estaria morta...

Mas não são almas
As que encontro
Nesse ontem
Dos enganos
E desenganos

São outras de mim
Que lá deixei
Bem vivas
Numa vida
Que matei!


Ao voltar do turno da noite, as roupas da criança, desarrumadas e fora do sítio onde as havia deixado, denunciavam o que a boca teimava em negar ao jorrar um rio de mentiras que não condiziam com o que os olhos envidraçados me diziam, deitando imediatamente tudo por terra. Das poucas palavras que a inocência do menino não compreendia, meia dúzia chegaram para confirmar o que as minhas suspeitas mais temiam: - " Já era de noite e fui às cavalitas do pai a casa de um amigo dele naquele sítio que tem muitas casas todas feias". O desespero matava-me todos os dias mais um bocadinho!

Este meu texto ( em ex aequo com o de outro colega de escritas - Tom) foi vencedor do concurso "imagens da nossa memória" do site EscritArtes

PS. Falta ainda referir que os textos não podiam exceder os 600 caracteres e teriam de contar um episódio a que tivéssemos assistido ao longo da vida e que, talvez por ter sido marcante, nos tenha ficado retido na memória como se de uma fotografia se tratasse. Um retrato pincelado de palavras.



Não precisava de muito para se sentir feliz.
Bastava-lhe apenas o casebre que possuía, onde à
noite acendia o lume da fogueira e se aquecia enquanto fazia o caldo das couves. Uma cama de ferro da qual já se tinha lascado a maior parte da tinta que não se percebia de que cor teria sido com dois ou três cobertores comprados com o dinheiro da lã das ovelhas, oferecia-lhe o parco conforto, que, para ela era mais que suficiente visto não conhecer outro. E ali estendia os ossos doridos por culpa do peso dos anos, em busca do merecido descanso ao corpo cansado.
De tempos a tempos, recebia a visita de uma sobrinha-neta, que, além da broa ainda morna da fornada da semana, lhe trazia também um brilho de alegria que logo se lhe via nos olhos de cor cinza, inundando-os de água salgada enquanto sorriam radiosos.
Por vezes também cantava. Não para não chorar a solidão dos dias, mas para se sentir um pouco mais acompanhada...



O que sou
Nem eu sei
Quando me perco
De novo
Antes de me achar
Em pensamentos
Tantas vezes desconexos...

Invento-me
Em cada esquina
De ruas improváveis
Demorando-me nas palavras
Que procuro
Compondo estes versos
Onde me reinvento
Peneirando-os aos ventos
Que me sopram
Luares de Outono...

Vivo-me e morro-me
Nestas terras do esquecimento
Em desassossegos
Constantes
Pela busca incessante
De mim mesmo!



Ali estava ele todo janota! Não fossem as circunstancias que para ali o trouxeram e quase que poderia aparecer numa boda mesmo que não fosse convidado, que certamente ninguém iria reparar.
Mas não. Era ali que tinha de estar! Naquele lugar deprimente, rodeado de gente decrépita num mundinho de inutilidades incomuns. Se pudesse, transferir-se-ia mentalmente para outro lugar qualquer, mais de acordo com a sua aparente condição, já para não falar da fatiota que muito o compunha, disfarçando-lhe até a (des)graça com que havia nascido e para a qual não se conheciam grandes remédios...
Na impossibilidade de tal, urgia concentrar a atenção em qualquer coisa que o abstraísse de tudo aquilo. E enquanto não despachavam o morto, olhou em seu redor, também ele mortinho por descobrir algo, para, por sua vez, ser ele a matar o tempo daquele compasso de espera interminável. Foi então que se quedou a observar um pingo que se alongava e se recolhia de novo, como que a tomar balanço do alto de um precipício em jeito de torneira enferrujada antes de se lançar no abismo que culminava num lastro acastanhado que cobria o fundo daquilo que supostamente deveria ser um lavatório. Dezenas de outras gotas, igualmente ferrugentas, se lhe seguiam, obedecendo sempre aquele ritual que se não percebia, de alongamentos e encolhimentos imediatamente antes do salto final.
Entretanto já tinha assomado à soleira da porta o cangalheiro-mor que exibia numa das mãos com ar vitorioso, a guia de marcha que se esperava. Desprezou a torneira ferrugenta e as suas gotas suicidas e seguiu em direcção ao caixão, empurrando a carreta que o transportava.



Em suspenso pelo fino fio da lembrança, ostentava no pensamento um pequeno pedaço de vida amarelecido pelo tempo que lhe desenhara traços de encanto, despertando sentimentos até ali desconhecidos. Coisas que os olhos não vêem, mas que a alma sente quando tocada pela sensação de vivências adormecidas ao longo de uma vida que se diluiu no éter em menos de nada, ressequindo-nos aos poucos e da qual sobraram pequenos cristais que brilham sempre que o cérebro se desliga do presente e se transforma numa tela mágica onde só passam as imagens do que desejamos, arquivadas na gaveta das relíquias de valor inestimável. É esse o tesouro da conquista pela sã harmonia do"eu"em constantes desassossegos motivados pela luta diária que só no fim nos apercebemos, girar em torno de coisa nenhuma!...




Eram as memórias que a não largavam, que tinha agarradas a si como uma lapa grudada na rocha; o sedimento de uma infância sombria, gorduroso e peganhento a salitrar-lhe as frágeis paredes da alma, a corroer-lhe o ser invisível que lhe habita as profundezas do íntimo onde se guarda o sentimento verdadeiro, aquele que esconde do resto do mundo...
Encontrei-a numa daquelas avenidas chiques da moda, para onde se mudaram as pessoas modernas e onde se passeava aparentemente descontraída, mas bastou um só sopro de brisa vindo dessa outra vida para se deixar cair na inevitável melancolia que lhe assaltou as débeis defesas do castelo de ar que construíra em torno de si para se livrar dos fantasmas que a perseguiam desde o dia em que os relógios pararam e lhe passaram a contar o tempo num ciclo errado, como se ela tivesse saltado para o interior de um espelho e o seu mundo se tivesse virado ao contrário, passado a estar, de súbito, no lado avesso da vida.




Era uma estória
Vinda dos tempos
Longínquos
Há muito sumidos
Nas brumas da memória
Das gentes
Da minha terra

Rezava então
A dita
Que por certo
Mais não seria
Do que uma lenda...

A lenda de um pai
E das ricas
Filhas suas

Levassem eles
O tempo que levassem
A descer ao Domingo
Lá do cimo
Da serra
Até às portas da vila
De Côja
Pois que não se rezaria
A missa
Enquanto o pai e as donas
Ali não chegassem!

Quem não sabia
Fica então a saber agora
Que dessa curiosa estória
Vem o nome
Da minha pequena aldeia
Perdida nos montes
Da serra do Açor:

Pai das Donas



Fiz a mala com alguma antecedência, movida pela ânsia que me tolhia o pensamento perante a perspectiva de uma liberdade ainda que utópica, mas que eu desconhecia...
Parti ao anoitecer de um dia que me ficou marcado para sempre. Não é que me lembre que dia era ao certo, mas pelo significado daquilo que considero ser um vil abandono na hora da morte.
Ferido numa bulha feia de machos pelo direito de acasalar com uma certa fêmea que por ali andava com o cio, apareceu-me em casa com uma pata a arrastar. Curei-lhe a ferida como podia, se bem que o buraco deixado à vista era assustadoramente enorme! Sem saber o que mais fazer que lhe devolvesse a vida ou pelo menos lhe aliviasse as dores da infecção que lhe devorava a carne, agonizava há vários dias numa cama improvisada no meio das aparas de madeira a um canto da oficina.
Bem que lhe vi a súplica no olhar triste e na mudez do miar cujas forças já não lhe permitiam soltar mais do que um ténue e quase inaudível ronronar, quando lhe passei a mão pela cabeça naquele que seria o derradeiro gesto de carinho dos tantos que havíamos partilhado e que agora, qual ingrata criatura sem sentimentos que tão miseravelmente o deixava ao abandono das mãos da cruel injustiça que lhe tinha varado o destino.
No dia seguinte a notícia chegou bem cedo pelo telefone: - O teu gato morreu!


O que se segue, são flash's de instantes remotos, dos mais antigos que possuo; arrancados lá bem do fundo do poço das minhas lembranças.

Meti-me numa cápsula do tempo e viajei sem destino.
Achei-me no mesmo lugar de sempre, de onde, na verdade, nunca cheguei a partir...
Aquele lugar é refém das minhas memórias e é para lá que fujo em segredo tantas e tantas vezes quando me quero esconder deste tempo de agora.

E vou pelos carreiros que conheço como as minhas próprias mãos. Tanto na ida como na vinda, tenho a companhia sempre pronta e desinteressada dos pardais e dos cucos esquivos, que me seguem lá no alto dos ramos dos pinheiros que me levam pela sombra.

A velha casa de pedra serve-me de abrigo aquando da trovoada inesperada. Existe lá uma prateleira com livros já meio desfeitos e aos quais faltam muitas folhas, mas, nas que lhes restam, há sempre qualquer coisa que ainda não tinha visto nem lido...

O velho abrunheiro, ao fundo da quelhada grande, oferece-me a sombra apetecível onde me deito descansada sob a relva e durmo uma sesta merecida.
Há joaninhas que se misturam com morangos selvagens, salpicando de vermelho o ervascal abandonado por onde me entretenho a brincar enquanto a minha mãe trata da rega dos feijoeiros ali ao lado.
Pela noitinha, de volta a casa, eu e os cabritos saltitamos contentes pelos muros adiante, ou não fossemos todos crianças!

É dia da matança do porco. Levanto-me mais cedo que o costume e corro para o mais longe que posso. Sento-me numa pedra, meto os dedos nos ouvidos (não quero ouvir os guinchos do pobre coitado) e espero uma boa meia hora... depois regresso.

Um serão quente. O canto dos grilos a cortar o silêncio. Um petromax na mão, alumia-nos o caminho. Eu às cavalitas do meu pai. Um caminho estreito. Uma casa com um outro petromax pendurado no tecto. Um monte de espigas à espera de serem debulhadas... meia dúzia de pessoas, cada uma com o seu mangual a bater uma a uma e o milho vai saltando e formando um imenso lago de grãos...
Há conversas, há risos e gargalhadas, há histórias de outros tempos ainda mais remotos. É hora de voltar. Amanhã o milho irá ao sol...

De tamancos com sola de pau, sobe ligeira a escada encostada aos ramos da oliveira grande do pomar. A mãe, aflita, chama-a, mas ela, teimosa, finge que não ouve e sobe cada vez mais depressa. Sobe até ao fim; até ao último banço da escada de madeira...

A fogueira crepitava e erguia labaredas altas, tal como ela gostava.
Sentadas no bordo, de mãos e pés esticados em direcção ao lume, riamos despreocupadas. Talvez o nosso riso se devesse apenas ao conforto de ver aquele lume a arder ali mesmo à nossa frente, a aquecer-nos por fora e por dentro. Nunca mais comi uma sopa de couves aferventada tão saborosa como aquela... Ao lado, uma malga de vinho e um naco de broa com sardinha, acabadinha de sair das brasas da fogueira.

Noutro dia, no telhado da mesma casa, sentadas nas lajes aquecidas pelo sol de Março, pedia-me que lhe enfiasse as agulhas com linha preta porque os seus olhos cor de mar rasavam-se de água e não a deixavam vislumbrar o buraco minúsculo da agulha. Estava sempre a coser qualquer coisa enquanto me ía contando histórias de lobos e de homens.




Tinha na curva dos anos uma espondilite incorporada que a obrigava a caminhar de nariz rasteiro ao chão, impedindo-a assim de contemplar o céu e tudo o resto que existia acima do horizonte rastejante ao qual os seus olhos estavam confinados, limitando-se unicamente às raízes e às pedras do caminho por onde caminhava sempre sem ver ninguém; ainda que, a dois passos de si, alguém consigo se cruzasse. Se lhe falassem, respondia prontamente com o cumprimento costumeiro de um "bom dia" ou "boa tarde" logo seguido da pergunta que se impunha: "quem está aí?" Se fosse alguém conhecido, ainda fazia um esforço e erguia-se o mais que podia numa tentativa vã de encontrar o rosto de quem do alto lhe falava, se não fosse, poupava-se ao esforço desnecessário.
A capucha pela cabeça aparava-lhe a chuva e o vento que no Inverno a não impediam dos cuidados que tinha.
Do sol de Verão, sentia-lhe o calor que lhe queimava a pele dos braços cansados e a luminosidade espelhada no alcatrão da estrada por onde seguia a caminho da vida que lhe fugia...


Há já vários dias que não escrevia nada. Por preguiça, cansaço, desinspiração ou o que quer que fosse, a inércia tomou-lhe conta do corpo ao ponto de se convencer de que por uma boa temporada não o iria conseguir fazer. Não da forma como queria.... Mas o inesperado aconteceu. Nessa tarde, ao ouvir uma música que já não ouvia há muito tempo e que lhe marcara a adolescência, foi como se um botão tivesse ligado algo no interior da sua mente e desbloqueasse algum canal misterioso que lhe trazia uma enxurrada de ideias de coisas até aí escondidas no subconsciente e das quais lhe desconhecia a existência. De modo que, se encheu de uma vontade urgente e escreve-las passou a ser a sua prioridade numero um, antes que se apagasse tudo e não restasse nem um só vestígio do que parecia ser um mar de pensamentos onde os peixes eram as ideias que lhe saltavam em ânsias de serem pescadas. Penitenciou-se por não trazer consigo aquele bloquinho mais a caneta que costumava acompanha-la para todo o lado mas que raramente usava, e logo agora, que tanto precisava, não os tinha consigo!
Mal podia esperar a hora do regresso! Assim que chegasse, iria de imediato desafiar o teclado do computador que ultimamente só lhe servia para futilidades e outras coisas de somenos importância, comprometendo-se a não lhe dar descanso durante o tempo que fosse preciso, noite fora.
Correu para a cadeira do computador, procurou a música milagrosa no You Tube e desatou a teclar freneticamente...




Fui ao rio certa manhã
levava saias compridas
levava, que estava frio
para me cobrir, agasalhos
... todos feitinhos de lã

Começou-se o rio a rir
do meu suave jeito d'andar
e do verde dos meus olhos
que o estavam a fascinar

- Menina, toca a despir
que te quero contemplar...
mergulha em mim
que sou rio, não te irei afogar

Fosses flor eu te daria
uma abelha p'ra te amar
Mas és mulher, és vaidosa
dou-te minhas águas tranquilas
para que te possas mirar

Oh, Rio de que tu falas?
Sim, sou mulher, ainda menina
Da Bordadura do Alva...
Não farei a minha sina

Tenho asas, quero voar
não me deixarei enredar
que me queres apaixonar

Ficou o Rio a chorar
pelos olhos da menina...

Ficou a menina a sonhar
pelo abraço do Rio




(Poema feito de versos entrelaçados.
Alguns são meus, outros são da amiga e poetisa Mel de Carvalho)



A casa de pedra, miserável, com telhado de lajes. Na escada, uma rapariguinha triste, de corpo miúdo e esguio, vai folheando um livro de banda desenhada cuja história se perdeu no tempo, confundindo-se com a dos próprios protagonistas, Mónica e João Cebolinha…
Corria nas bocas do povo que a mãe se tinha enforcado com uma corda que prendeu a uma trave do curral das ovelhas. Havia também quem dissesse que não tinha sido bem assim. Desconfiavam até, de algo bem mais escabroso. Talvez um homicídio levado a cabo por uma cegueira de ciúmes… Nunca se soube ao certo. Certo foi, que por causa disso, foi separada do irmão que ficara com o pai e levada para o pé da sua avó, que raramente visitava. Que quase nem conhecia.
Tinha as unhas roídas até ao sabugo, e mesmo assim, continuava a roê-las pelo meio escavando buracos no lombo das cabeças dos dedos de modo que, parecia que os ratos a iam devorando de noite enquanto dormia.
Costumava ir para o pé dela. Ela deixava-me folhear os seus livros de bonecos que eu não tinha. Por vezes, sentia o aroma das maçãs de bravo mofo que se esgueirava pela frincha da porta encostada. Aquele aroma… ainda hoje o sei de cor.
Um belo dia, em que voltei a procurar pela sua companhia, disseram-me que o pai a tinha vindo buscar… nunca mais a vi.
Muitos anos depois, soube que tinha casado com um homem rico, que vivia no Porto e que já tinha pago duas ou três desintoxicações ao irmão, que, ao que parece, deixou de ter aquele ar inibido que mostrava (quando moço já mais crescido e até muito bem parecido) sempre que por ali aparecia com o seu pai, geralmente por altura das festas, e se tinha metido por caminhos espinhosos de vícios destruidores de corpos e de almas.
No ano passado encontrei-o por acaso. Parecia um pedinte, bêbedo de miséria…


Se amar alguém
For mais do que tudo aquilo
Que as palavras possam dizer
Então
Isto que eu tenho
Cá dentro
Que me mói
O sentimento
É bem capaz de o ser!

Amar
Não é só sorrir
Ou escrever frases de amor
Nos muros brancos da vida
Nem tão pouco
Gritar aos quatro ventos
O que o outro deseja ouvir...
Amar é muito mais do que isso
É aprender a admirar
O que nos fazem sentir
Os pequenos detalhes
Em doses mínimas
De prazeres partilhados...

Mas é também sofrer sozinho
Fustigar-se até a ferida sangrar
E deixar o sangue escorrer
Sobre o erro cometido...
É também engolir em seco
Quando se quer cortar o silêncio
Em fatias pequenas
E dar-se conta
De que não possui de momento
Qualquer ferramenta
Para isso

Amar
É admitir que se perdeu a razão
Ousando ir até mais longe
E querer com este poema
Subir ao altar da tua emoção
E porventura...
Alcançar o teu desejado perdão!



Todos os dias são vésperas de outros dias.
Todos os dias, a seguir aos dias das vésperas, serão os dias seguintes. O depois de...
Por isso, todos os dias serão sempre importantes vésperas de alguma coisa.

Na véspera de nós,
costumava convidar o silêncio para a minha companhia.
Depois, bebíamos os dois em segredo um cálice de ânsias, que se dissolvia nas letargias sonâmbulas das madrugadas, empoleiradas nos ponteiros de um tísico relógio de parede que marcava impiedosamente, um a um, os cínicos minutos gasosos da insónia, insolente e insaciável devoradora de quietudes nocturnas...


Vociferam altaneiras
As vozes!

Já antes haviam galgado
Furiosas
As paredes das gargantas
De esganiçadas carpideiras
Cuspideiras de prantos
Alheios...

Agora
E frigidamente
Espojadas pela poesia
Jorram
Em desatino
Caudais inimagináveis
De improperados rios
De verbos
Tão empobrecida(mente)
Desvestidos de versos...



Não se recorda há quanto tempo ali está, não sabe os anos que tem, nem sequer o que fora em tempos se é que algum dia chegou a ser alguma coisa. Diz que talvez tenha sido carteiro, cobrador, polícia ou barbeiro... pode ter sido tudo isso, uma das coisas ou coisa nenhuma. Pelo modo como fala, até pode muito bem ter sido doutor! Mas... o que importa isso? O que poderá interessar o passado de uma alma da qual ninguém se interessa no presente? Não se lhe conhecem amigos nem família; pelo menos, ninguém aparece para a visita.
Sabe, isso sim, cantigas de cor de outros tempos idos, que, por um qualquer motivo, lhe ficaram intactas num recanto da mente onde tudo o resto se diluiu ou deformou. Recita-as pomposamente como se declamasse poesias, num tom de voz potente e bem colocado, devolvendo à lucidez um pequeno instante que se escapa da loucura que normalmente lhe habita a mente, como se fosse um cão a morder-lhe o cérebro, constantemente...


Há qualquer coisa de enigmático que se esconde por detrás da falsa indiferença que ambos fazem questão de mostrar. Talvez no indizível dos pensamentos...
É uma espécie de jogo de sedução, mortalmente perigoso e cuja única regra se impõe pelo silencio que a rege e algo me diz que nenhum dos dois se atreverá a quebra-la, jamais!
Obrigados a permanecer frente a frente, sem terem para onde fugir, não terão outro remédio que não seja o de arriscar no jogo que servirá também para testar as suas resistências. Por isso, serão jogadores mudos até ao resto da vida, cientes de que nada mais haverá para ganhar, além daquilo que todos os dias irão perdendo e que já conta desde o início, logo após o fim...
Trocaram a amizade saudável que tinham por uma leviandade, por um capricho, por um impulso, por uma paixão... e se algum dia ganharam, certamente que o peso da perda será sempre maior do que o do ganho.



Disse-me que andava a cultivar silêncios, com o intuito de melhor poder treinar os músculos da virtude do pensamento, que, por descuido seu, já dava mostras de alguma fraqueza devido ao desleixo a que se tinha votado. Disse-me também, que se não tivesse tido um rasgo de lucidez naquele momento exacto e desse mais uns passinhos em frente, naquela direcção desnorteada, não tardaria muito a entrar numa espiral devastadora, rumo à vastidão do infinito mundo da imbecilidade. (Coisa que sempre criticara enquanto ser humano detentor de todas as faculdades mentais no seu perfeito estado de saúde. Mas um dia, num certo estado de desespero para onde a vida o tivera empurrado, e sem saber muito bem como, se viu agarrado a um galho que lhe pareceu firme ou teria sido levado na enxurrada).
Seria pois, por certo, um caminho sem retorno com início na beirinha daquele precipício do buraco negro da insanidade para onde se costumam atirar todas as almas vazias que não souberam cuidar de si mesmas e se entregaram deliberadamente aos sugadores de cérebros a quem chamavam respeitosamente de pastores, passando assim a fazer parte de um vasto rebanho de suicidas voluntários sem qualquer tipo de vontade própria, limitando-se a seguirem atrás umas das outras...
Pobres almas desperdiçadas e em torno de coisa nenhuma.



A terra
A mais perfeita
De todas as criações
Das criações
Que o universo
Contém

Dizem
Por via
Das profecias antigas
Estar breve
O fim de tudo

Qual sombra apocalíptica
Tão grande
Quanto o manto
Da noite perpétua
Capaz de engolir o mundo
E o levar
Para além do infinito

Nem tempos
Nem eras
Nem memórias
Nem partícula alguma...

Tudo se findará
Como se nunca
Nada houvesse existido...


A propósito do último livro de Manuel Alegre, o nosso político mais poeta que se conhece e ao qual deu o curioso título: "o miúdo que pregava pregos numa tábua", veio-me imediatamente à ideia a minha remota infância, que, numa coincidência nostálgica, me reportou no tempo ao mesmo pé de igualdade da deste miúdo do livro. Assim sendo e não pretendendo usurpar coisíssima nenhuma ao autor deste livro a não ser o que o seu título me despertou nas lembranças onde era eu a miúda que pregava pregos numa tábua.

O meu pai era marceneiro e era por ali, dentro da sua pequena oficina, que eu ficava a maior parte dos dias enquanto a minha mãe se ocupava dos trabalhos do campo a que estava obrigada.
Entretinha-me pois, a brincar com o que tinha mais à mão e o que mais poderia ser? ... se não pregos, um martelo sem orelhas pequeno e os também pequenos quadradinhos de madeira de todas as formas e tamanhos que eu descobria no meio das aparas e da serradura que cobriam todo o chão.
Pregava pregos e dedos e no fim ficava um tanto ou quanto desiludida com a minha obra final. É que tinha a mania de querer fazer em ponto pequeno o que via o meu pai fazer em tamanho grande...

Talvez um pouco fora do contexto, mas não me posso esquecer também daquele homem que de vez em quando passava à porta da oficina e assomava na soleira da porta mendigando qualquer coisinha que lhe forrasse o estômago ou lhe agasalhasse o corpo já tão castigado pelo frio do Inverno rigoroso.

Naquele tempo viam-se alguns pedintes solitários que calcorreavam antigos caminhos de cabras que só eles conheciam e que os levava de terra em terra, mendigando uma côdea de broa aqui e ali ou uma peça de roupa ou de calçado que já não servisse ou fizesse falta a ninguém, fazendo desse modo de vida a sua odisseia existencial.

Falei neste pobre homem, porque é incontornável a lembrança daquele episódio caricato e que ainda hoje é motivo de gargalhadas sempre que alguém se lembra e se fala nele.
Então dizia o homem, virando-se para o meu pai, já depois de ter morto a fome e enquanto descansava da jornada, regando o cansaço com um copito de vinho - Ó Ti Abílio, e se você me desse uma tábua e um prego para eu levar comigo e quando chegasse à minha terra a pregasse numa parede que lá há? A ver o que é que dava!...


Não são raras as vezes, que, na busca do inefável, do mítico perfeito do nada que pode ser tudo, capaz de arrancar "oh's" de admiração das bocas dos outros, me perco em caminhos feitos de círculos minúsculos e fechados sobre si mesmos, na ridícula galáxia da minha ignorância, rendendo-me ao óbvio que não escondo e que por isso o deixo bem à vista de todos...
Quando finalmente me dou conta de que não sou capaz, baixo a cabeça num gesto de submisso conformismo enquanto me reduzo à minha própria insignificância, arrastando pelo chão a miséria que me resta, mas que, ironicamente, é também a minha única fortuna. Tal como uma pobre garota pequena e triste faria com a sua velha boneca de trapos, já tão suja e gasta, ao passar de mão dada com a sua mãe pela montra de uma loja de brinquedos e visse uma linda "barbie" sentada do lado de dentro da montra.
E morro-me lentamente, afogada nas minhas águas inquinadas de mediocridade, que, borbulhando, vão emergindo de dentro de mim, como uma poção mágica-maligna fervilha no caldeirão de uma bruxa daquelas histórias de arrepiar criancinhas inocentes... e que a certa altura me cospem e me deixam a flutuar sobre si mesmas, como o mar cospe um cadáver inchado que se solta de um navio afundado e o abandona à sua sorte, deixando-o a boiar impiedosamente ao sol, à chuva e ao vento, até se desfazer ou ser devorado por um qualquer tubarão faminto e já nada mais restar a não ser na hipotética saudade de algum amigo ou familiar, apagando assim com esta crueldade quase cínica, qualquer resquício da sua passagem pela vida...



Vede bem
Com olhos de ver
O que lhe fez
O inexorável
E incansável
Cinzel
Da vida!

Ferramenta
Impiedosa
Caprichosa
E cruel
Que lhe roubou
A lisura da pele
E lhe cavou
Na carne do rosto
Socalcos tamanhos

Por onde se adivinha
Que desmedidos
Rios de sal
Terão corrido
Secando-lhe
A última fonte
Dos sonhos...

Eis aqui
Pois
A obra (im)perfeita
Da arquitectura
Do tempo!