Gosto de remexer nos cacos da minha história, que guardei como relíquias de valor incalculável. Revolver o amontoado de lembranças, sentir o seu cheiro, que, por instantes, me levam ao sítio e ao tempo a que pertencem, fazendo com que reviva os melhores pedaços da minha vida passada, sem sentir grandes saudades dos que ainda não vieram. Talvez venham, talvez nem venham...
De quando em quando, dou longos passeios pelo que me resta do que a minha mente não apagou ainda. Só dou conta de mim, quando me vejo ali sentada de novo, no meu jardim de melancolias perfumadas a folhear os meus álbuns antigos, onde guardei alguns dos meus melhores momentos. A maior parte, são pertença da minha infancia. Uma infancia que me visita vezes sem conta e quase todos os dias.
Quedo-me em cada um deles e é aí que a magia acontece... num piscar de olhos, revejo-me do lado de dentro das imagens que me povoam o pensamento. Sou eu ali, como se estivesse sentada no sofá da minha sala, a assistir a uma cena de um filme. Só que, desta vez, trata-se do meu próprio filme. E não deve ser por acaso que desempenho o papel principal, ou não fosse eu a protagonista da minha própria vida!...
Neste filme antigo, cujo elenco ali se mantém bem vivo, apesar de já terem morrido uma boa parte deles; as cores já um pouco esbatidas pela minha memória, ainda realçam na perfeição as imagens onde me revejo, como se o tempo tivesse parado e eu nunca tivesse dali saído. É por isso que vos digo, que não tenho saudades do futuro...
Quanto mais me confronto com os anos passados, que se vão acumulando no sótão das minhas memórias, mais antigos se tornam os do futuro. E sendo assim, não tenho pressa de coisa nenhuma, muito menos de apressar o tempo, ansiando os melhores anos que nunca mais chegam... pois que esses, esses já passaram!
Poucos são os que dão por isso.



A noite estava fria, tão fria que ninguém fazia ideia.As ruas desertas eram agora mais tristes ainda. De dia nem se notava, tudo parece mais agradável, camuflado pelos ruídos de fundo e o reboliço normal da vida. Pessoas e carros correm desenfreados para um qualquer compromisso inadiável, como se tudo dependesse da pressa que levam na ponta dos minutos que lhes restam para a hora certa... como se as suas vidas dependessem apenas disso. Chegar a qualquer lado a tempo e não ser repreendido nem penalizado por isso. Ou mais grave ainda, perder algo de que se arrependesse para todo o sempre...
Mas o dia já terminara há um bom par de horas e aos poucos as ruas foram-se esvaziando. Ficaram só os que não se conseguem separar delas, os que há muito passaram a fazer parte delas, como se fossem bibelots ou guardiões notívagos da cidade.
A temperatura baixou repentinamente e apanhou-os desprevenidos, nem as caixas de cartão novas que trouxeram das traseiras das boutiques vizinhas e os cobertores coçados que já tinham, lhes chegavam para se resguardar do frio cortante da noite. Alguns desistiram de resistir, levantaram-se e fizeram fogueiras em latas de tinta velhas que arranjaram na obra ali ao lado, paredes meias com o passeio das arcadas onde se costumavam deitar, por ser coberto e o mais recolhido das redondezas. As chamas aqueciam-lhes as mãos geladas e o vinho da garrafa que partilhavam gole a gole, tratava de lhes aquecer a alma empedernida pela cicatriz da solidão de cada um, naquela que era a noite mais triste de todas as que o ano tinha.
Talvez se não houvesse Natal, as noites fossem só noites. Umas mais frias do que outras, mas só mais uma noite sem qualquer outro significado que a tornasse mais triste ou menos triste do que as outras.



No acaso de um acaso, encontraram-se só no ocaso do dia e... por acaso.
E não foi por acaso que a empatia foi brutal!
Palavra puxa palavra, sorriso puxa sorriso e num ápice se elevaram ao pico as emoções indizíveis que se erguem do nada... e sem mais perdas de tempo, saltaram alguns dos pormenores da conquista emocional e procuraram um lugar tranquilo, num recanto da praia já deserta, longe de olhares indesejados, para saciarem o que os corpos lhes imploravam em outros olhares, em outros apelos mais carnais do que emocionais. Talvez mais tarde se dedicassem a isso com mais perfomance... não podiam nem queriam deixar passar aquele instante tão... tão... fortuito e ao mesmo tempo, furtivo.
E antes que se fizesse tarde, não se entregaram ao descaso, sob pena de desperdiçarem o pouco do tempo que tinham, para viverem o tanto que desejavam.
E num impulso, entregaram-se de novo ao saboroso acaso, desta feita, quando já despiam a pouca roupa que ainda lhes restava, para que nada lhes atrapalhasse o mergulho nas teias da paixão inflamada, num fulgor indescritível de total comunhão de corpo e alma.
Há casos e casos... mas um caso assim, que nasceu de um acaso do acaso no ocaso sem descaso, é algo fenomenal!...