Amanheci com a alma empoleirada, no ramo mais alto da árvore grande da saudade...
 
Dali tinha uma vista privilegiada! Podia estender o meu olhar, pelas planícies verdejantes onde tinham nascido pequenas flores amarelas, anunciando que estaria para breve a chegada da Primavera. Inspirei aquele odor silvestre com sofreguidão, como quem bebe um copo de água fresca e mata uma sede enorme. O meu peito encheu-se de novo, com aquele ar da esperança renascida que me fez sorrir com aquele sorriso espontâneo, igual ao de uma criança feliz, que desconhece a maldade dos homens.

Fechei os olhos e por momentos regredi no tempo, voltando ao meu berço e aos lugares onde cresci em total liberdade, como o eram também os pássaros que eu ouvia mas que nunca via, ao longo de todo o dia, em chilreios alegres e incansáveis que cortavam o silêncio. Senti-me de novo aquela criança que fui, ingénua e pura, que corria pelos campos abertos... verdadeiramente feliz!

Abri os olhos e admirei aquele quadro, pincelado de cores e cheiros, como se aquele fosse o momento derradeiro e não mais o voltasse a ver... queria arranca-lo daquele lugar e leva-lo comigo, como quem leva um sonho...

Balancei-me naquele ramo alto da minha árvore da saudade e desafiei o presente, mostrando-lhe as coisas boas que coleccionei ao longo da minha vida e que guardei sob a forma de memórias, que me chegam ao pensamento de vez em quando, como se fossem ecos... ecos de um ontem com os quais me vou embalando, tentando acertar o meu passo, num compasso desacertado de uma dança onde o meu par é o próprio descompasso do tempo...
 
Não sei se algum dia o irei conseguir acertar. A minha idade cronológica não corresponde à minha idade real, aquela que eu realmente sinto!





No princípio
Consome, corrói, destrói!
Depois...
Depois já nada mais importa...


O tempo vai passando... devagar...
E chega um dia
Em que já nada se sente
O que foi, já não o é
O que fora antes tão importante
Deixou de o ser
O que sabia a pouco
Dilui-se na espuma dos dias
Preenchidos
De silêncios partilhados

Estranhos e cúmplices
Silêncios estes
Que se agridem
Que se gritam
Naquela linguagem surda
Que mais ninguém entende
Cruzando-se no mesmo ar que respiramos
Sob a forma de ecos mudos

Estridentes sons agudos
Tão cheios de tudo
E de nada...



Passeia-se  orgulhosa a indiferença
Apagando gestos e sorrisos antigos
Ternuras
Cumplicidades...
Que chega até a doer
De tão aparente e natural o ser


E as bocas permaneceram caladas
Ao longo dos dias
Das semanas
E dos meses
Que passaram a ser anos


Apenas o pensamento ficou
Intocável
Incontrolável
Por vezes enlouquecido
Lembrando-se do que não devia
Ousando saltar o muro
O imponente muro do orgulho
Desafiando o proibido
E arriscando um ensaio
De uma fala ainda não dita
E que jamais será proferida


Mas... ainda assim
Quem sabe num remoto acaso
Num momento de fraquezas consentidas
Num instante que rasgue
O fino e frágil véu do imprevisto...

Mas nunca com um simples "tu"
O mesmo "tu" que outrora se prostituiu
E morreu enleado
Nas amarras de um capricho...


O "você"
Será a palavra nova
A palavra obrigatória
Sob a qual se curvará
O inevitável...


Eis que ela chega
Sumptuosa e fria
A grande substituta!

Onde reinará implacável
Para lá até, do eterno...


Hoje
Rasguei
O frágil muro de silêncio
Que me protegia dos olhos do mundo...

Quebrei
As regras a que me tinha imposto
No limite das minhas forças

Mas
Ainda me sinto fraca...
Por isso
Não esperem de mim
Grande coisa...

E sabem porque voltei?
Porque não aguentei
A minha própria ausência...

É aqui que eu pertenço!
Ainda que este seja
Um mundo de faz de conta...